sábado, 9 de abril de 2016

Franquia de Internet fixa: análise comercial e técnica. Perspectivas futuras

As operadoras de Internet estão ameaçando de fazer valer as franquias de consumo de dados nos planos de Internet fixa, e introduzir as franquias na renovação dos contratos antigos que não continham esta cláusula. Muitas pessoas já fizeram as contas e entraram em desespero, concluindo que os planos divulgados, mesmo os maiores, não vão ser suficientes Que provavelmente gastarão muito mais ou ficarão sem Internet. E de fato, se levar em consideração o uso cada vez maior de streaming, download de jogos e etc, uma pessoa típica usuária desses serviços ira estourar facilmente 130 GB de dados por mês do plano top. Neste momento entraria um consumo reduzido ou corte, ou pagamento de pacote adicional. Realmente, dito assim, é um retrocesso: vamos ter que voltar a assinar TV a cabo? Deixar de ver Youtube? De fato, esta perspectiva é desanimadora sim, e se tomarmos a base de preços de hoje, fica muito mais caro ter Internet. Aí entram oportunistas de plantão levantando bandeiras políticas, conclamando seguidores em redes sociais para a causa da "Internet livre", que me parece muito similar às manifestações por tarifas de transportes públicos mais baratos (ou gratuitos). Uma "causa" que só leva em conta o efeito final, que é o preço do ticket a pagar, e não todo o resto que está envolvido (inflação, custos, negociação, competição de mercado, regulação do estado, qualidade do serviço,etc.). De um lado empresas querem lucrar cada vez mais, e de outro consumidores querem mais qualidade por um preço menor, e no meio o governo deve zelar para que o relacionamento entre os dois seja justo, sem abusos de um deles, e que entrem em vigor as leis naturais de mercado. E se for assim, do ponto de vista do consumidor, me parece que não há tanto motivo para desespero. Temos, como consumidores, um bom cacife nesta negociação, mais poderoso que discursos indignados em redes sociais. Atenção, nada está garantido, mas as perspectivas são muito melhores do que os alarmistas e sensacionalistas fazem parecer. Vamos analisar porque.

Primeiro, analisando a situação atual, vemos que as operadoras de Internet (que geralmente também vendem TV por assinatura) estão realmente sob pressão, e para chegar à conclusão deste artigo é necessário entender a causa: a tendência de evasão das TVs por assinatura e o aumento do streaming. Os planos de TV são muito caros e depois de algum tempo decepcionantes. Paga-se por muito conteúdo ruim, por vendas casadas em pacotes fechados. Os horários dos programas são inconvenientes e um dispositivo de gravação é quase obrigatório (geralmente fazendo parte de um plano mais caro). Nunca tive que chegar a usar um gravador desses de TV a cabo, mas imagino o procedimento de programação de gravação deva ser mais inconveniente e chato que simplesmente escolher um título no Netflix, a qualquer momento, sem planejar nada.  A lista de motivos para odiar planos de TV por assinatura é grande, e com as alternativas de streaming é mais natural que as pessoas estejam migrando: é melhor e mais barato. O conteúdo disponível legalmente por  streaming ainda não é o mesmo mas vai acabar sendo equivalente. Sobre os programas ao vivo, algumas TVs brasileiras (Globo e Band, vide apps do Android) já estão oferecendo parte da sua programação por streaming. Ou seja, tecnicamente nada impede que mesmo conteúdo ao vivo seja streaming.


Então por um lado, as operadoras de telecomunicações estão perdendo a receita dos planos de TV. Por outro, este consumo de vídeo está migrando para streaming, gerando tráfegos de dados cada vez maiores e pior,  fortemente variáveis nos horários de pico, criando mais necessidade de investimento em infraestrutura para acomodar o aumento de demanda e garantir qualidade. E mais, as operadoras não tem nenhum retorno sobre o lucro gerados nos serviços de streaming. Ele vai direto para o Netflix, para o Google (venda de filmes na loja e a propaganda do youtube), para a HBO (nos EUA, considerando o plano desvinculado de TV, mas que já foi previsto para o Brasil), o Crackle, e qualquer outro serviço similar que surja, fornecendo conteúdo. Nem estou considerando downloads ilegais de filmes e séries, que também geram muito tráfego e nenhuma receita.

Falando em gerar mais tráfego, esse é um ponto a ressaltar, já que o  público nas redes sociais e mesmo a mídia especializada ou está ou ignorando completamente ou tratando de forma equivocada. É complicado assistir um vídeo em um site especializado de tecnologia, e um dos apresentadores comparar internet com serviço de água ou energia elétrica, com o argumento simplório que ao contrário desses o consumidor não está gastando nada, e por isso pode ser ilimitado. A analogia correta no caso de redes não é essa, seria melhor comparar com uma estrada ou um estacionamento, onde basicamente o que você "gasta" é o espaço onde está o seu carro, e se forem muitos carros, ou engarrafa ou não tem vaga. Canais de comunicação também tem uma capacidade limitada de tráfego, medida em bits por segundo. O que o consumidor está gastando na internet é a ocupação de parte do canal em determinado instante, em todos os links entre ele e os destinos de tráfego. Se o link da operadora estiver ocioso então sim, ela não tem custo adicional pelo tráfego de um usuário. Mas se ao contrário este usuário e outros estiverem usando toda a banda, e considerando apenas a parte sob administração da operadora, aí o ocorre é lentidão na troca dos pacotes de dados, e isso vai gerar custo como veremos a seguir.

Vamos considerar o nível de serviço já imposto pela Anatel, e vamos supor que está sendo verificado e cobrado, pois deveria. A operadora é obrigada a oferecer um percentual mínimo da velocidade contratada. Se a velocidade cai abaixo dele, ele pode ser multada. Para não permitir isso, a operadora tem que realizar investimento na infra-estrutura: passar mais cabos, instalar switches e roteadores, fazer obras de construção, dutos, postes, etc. (investir = gastar). Então a verdade é que sim, dependendo do aumento de tráfego, isso pode vir a gerar despesas para a operadora, gasto de recursos. Atenção, não estou dizendo que algum aumento de preços dos planos ou a limitação de franquias proposta agora seja realmente resultado de necessidade de investimentos. Nós como consumidores não temos como saber isso! Sim, a empresa pode estar aumentando apenas para lucrar mais. O que estou dizendo é que a necessidade de investimento ao longo do tempo com certeza acontece. Quando exatamente só saberíamos se estivéssemos auditando constantemente as empresas. Por isso a abordagem do consumidor deve ser de caixa preta, olhando apenas as condições dos planos e escolhendo o mais conveniente entre as várias empresas concorrentes

Mas e se não houvesse Anatel e/ou se este nível de serviço não estiver sendo observado ou cobrado. Primeiro, só para reforçar, deveria, porque ele é realmente um dos instrumentos legítimos do consumidor. Mas se não houvesse mesmo, a única saída seria abandonar a operadora com lentidão e qualidade ruim e contratar outra, o que pode ser inconveniente e chato. Mas sobretudo, depende da existência de vários fornecedores competindo. Supondo a existência de concorrência, as empresas que quisessem manter clientes teriam que investir no aumento de infra-estrutura da mesma forma, sempre que houvesse aumento de tráfego, e depois na manutenção dela. redes maiores demandam mais gastos de manutenção. O quanto exatamente não importa, não vamos auditar a planilha de custos e sim comparar especificações de serviços e preços finais das concorrentes. E adiantando que, se não houver concorrência, se tiver cartel ou outra prática ilegal, aí sim os consumidores estão perdidos.

Então, se colocando no lugar do gestor de uma operadora de telecomunicações você pensaria: "todos estes serviços de streaming externos à minha rede estão gerando um trafego de dados cada vez maior, que me obriga a investir mais em infraestrutura (cabos, roteadores, servidores, obras, etc), não recebo nada em troca, e não tenho como cobrar a mais dos clientes e nem desses serviços (e já tentaram)". Dito assim parece péssimo, mas é ainda pior, porque estas operadoras quase sempre também vendem os planos de TV por assinatura que estão sendo substituídos por serviços em streaming.

Como já vimo toda esta receita dos planos de TV está simplesmente deixando de entrar nas empresas que vendem "combos" (Internet, TV, telefone), que são hoje praticamente todas as operadoras de Internet. Então existe um grande conflito de interesses interno nessas empresas, entre a área de redes, que tem que investir mais em infraestrutura (gastar), e a área de venda de conteúdo, que está lucrando cada vez menos (não receber), e continuando assim, esta última área deve em algum futuro não tão distante simplesmente deixar de existir. E a receita pela venda dos planos de Internet  é praticamente fixa. O grande pesadelo atual das operadoras é estarem se transformando em fornecedores de um produto genérico, quase totalmente "comoditizado", um "tubo" de dados via TCP/IP, com garantias de qualidade de serviço reguladas pela Anatel. Falando assim pode parecer que estou com pena das operadoras, mas é bem o contrário, estou explicando as fraquezas do "adversário", e entender a outra parte é sempre útil na negociação. Continue lendo, no final a conta vai fechar para os dois lados, e as operadoras sempre tem o seu lucro, ou simplesmente saem do mercado.

Além disso note que falamos muito de vídeo, mas praticamente todas as outras mídias já migraram para Internet, totalmente ou em parte. Música hoje é quase só streaming, jogos de PC praticamente só se compra por download, a venda de livros digitais está crescendo e se tornando importante. Nesta lista é bom ressaltar os jogos de PC (e os downloads de console, embora em console ainda predomine venda de jogos em mídia), porque um único jogo pode facilmente passar de 30 GB de download. Isso fora os patches inevitáveis. E tem as atualizações do Windows também. E os dados, cada vez mais com seu lugarzinho na nuvem, no OneCloud, ou no Google Drive, precisando ser atualizados (copie muitos dados para a pasta OneDrive e veja o gargalo que é o limite de upload). Tudo isso gerando tráfego em um mundo dependente de rede. Não considero mais concebível não ter algum serviço de conexão Internet, a grande questão é quantos MB, sob que condições, e por que preço. Este é o segundo ponto a se ter em mente, não se trata de ter ou não Internet, e sim da extensão de serviços a serem usados nela. E essa é a fraqueza do cliente de Internet, que ela se tornou um serviço essencial.

Por fim o terceiro ponto, a livre negociação, que faz parte das premissas deste argumento. As franquias não são novidade nenhuma. A operadora de internet fixa que eu uso no momento sempre ofertou planos com franquia, já está no contrato, só que no momento, ao que parece, eles não estão executando o corte. E se não vem sendo praticado em muitos casos,  podemos apenas especular porque. Pode ser apenas porque a empresa não implantou os mecanismos confiáveis de aferição. Atualmente tenho uma consulta no portal da empresa que, pelas variações mês a mês, simplesmente não parece confiável. Isso é tecnicamente simples de resolver, implantando ou corrigindo os medidores. Mas pode ser também pela concorrência de mercado, já que alguns planos existentes anunciavam explicitamente que eram ilimitados (por contrato). Daí quando o cliente tivesse sua Internet diminuída ou cortada, por mais que isso fosse legalizado no contrato, ele iria começar a olhar opções no mercado. Nesta caso a situação está prestes a mudar, já que todas as operadoras estão falando de franquia. E por fim existe uma interpretação do marco civil de Internet de que a conexão não pode ser cortada a não ser por falta de pagamento, mas não vou entrar em questão jurídica. Na conexão móvel, ao contrário, geralmente as franquias são executadas. Mas perceba que o mercado já se adaptou, e hoje temos planos 4G com franquias entre 2 e 5 GB, adequadas para uso móvel típico,  por um preço razoável. A lei de oferta e procura funcionou, consumidores individualmente reclamaram, trocaram de planos, e ninguém está fazendo manifestações públicas por causa da franquia de dados de celular.

Então, se, e tudo se baseia nesta condição, SE houver concorrência de fornecedores, SE não houver cartéis, com o CADE e a Anatel fazendo o seu trabalho, o que pode ocorrer é que as franquias e os preços vão acabar se ajustando com a demanda e capacidade de pagamento do público alvo. E até mesmo a própria existência da franquia em determinado contrato é sujeita às leis de mercado, vide planos (de voz) de telefone fixo e de celular ilimitados que estão surgindo. O fato da lei do país permitir franquias não significa que o mercado obrigatoriamente a pratique, que as partes não façam outros tipos de contrato. Então eu vejo um cenário possível de franquias que atendem ao consumo típico (e provavelmente de mais de 130 GB), não tão caras, e ofertas de planos mais caros ilimitados. Ou um cenário possível, embora na minha opinião, embasada no que foi dito acima, menos provável, de franquias muito limitadas e pacotes adicionais caros, a maioria das pessoas limitando fortemente o uso e voltando ao passado, reassinando planos de TV, voltando a comprar jogos em DVD (para PC nem vai achar muitas opções), ... é o cenário dos alarmistas. Qual deles vai ser? Não teremos que esperar muito para saber, as franquias já estão entrando em vigor agora, segundo esta notícia do site Olhar Digital.

Mas existem outros fatores além da velha lei de oferta e procura e da competição.  Para grandes conglomerados internacionais de tecnologia (Google, Netflix, Facebook, etc) é importante o acesso individual a uma quantidade de dados mensais grande, as pessoas tem que ver anúncios, só vão assinar o streaming se não esgotar a franquia logo no início do mês. Se o custo mensal de Internet for algo pesado demais para o bolso do consumidor médio, eles perdem. De alguma forma os interesses deles vão pesar. Não por outro motivo a Google nos EUA tem uma operadora de Internet, a Google Fiber, ainda que com cobertura limitada, e sem interesse de dominar, mas como forma de manter um parâmetro de mercado e proteger seus interesses.

Concluindo, se o governo fizer sua parte nisso tudo que é basicamente garantir livre concorrência e prevenir a formação de cartéis, o mercado, a negociação entre clientes fornecedores, as tendências tecnológicas e os novos players na Internet, vão se encarregar de nos manter conectados por um preço baixo. Se apesar de tudo isso ficar realmente muito caro, como consequência imediata usaremos menos, e com isso resultando mais prejuízos para "eles" (empresas fornecedoras de conteúdo) do que para "nós" (consumidores). Se pararmos de usar Youtube porque não cabe na franquia, quem deve chorar mais?

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